Cafeomancia expandida
Ler a borra de café — chama-se cafeomancia, teoricamente — é uma tradição árabe. Dizem que dá para predizer o futuro.
Aqui em casa, tomamos o café e, no fundo da xícara, vemos que ficam só algumas manchinhas. Se você também não vê borra nenhuma é porque, provavelmente, deve tomar café coado. Dessa forma, para ser capaz de praticar seus dons premonitórios, você poderia colocar o pó na água fervendo, deixá-lo decantar e servir. Como o café não é coado com esse método, um pouco da borra vai parar na xícara quando ele é servido e fica ali no final da bebida.
Dizem que é preciso imaginação e sensibilidade para ver as imagens e associá-las aos eventos que elas revelam. Nunca foi uma prática a que me dediquei. Mas um dia desses eu vi algumas imagens…
A escuridão espalhar-se até onde a vista alcança… Um animal ferido receber uma unção… O apagar das revelações.
Foi tudo muito rápido…
Era um sábado à tarde, após uma semana de trabalho bastante intensa. Eu estava exausto. Nesse dia, até peguei o computador para trabalhar, mas como estava lacrimejando de sono, decidi cochilar uns 20 minutos após o almoço — que se tornaram quase duas horas.
Levantei meio tonto do sofá e fui até a cozinha preparar um café. Com os gestos ainda sonolentos, medi o pó de café. Escaldei o coador de papel com a água fervendo, aproveitando a água para aquecer a garrafa térmica. Joguei a água na pia e coloquei o coador sobre a garrafa térmica. Lenta e desatentamente, coloquei o pó de café no coador e despejei um pouco de água fervente para hidratar o pó. Esperei alguns segundos e acrescentei uma boa quantia de água.
Até aí, nada de novo em meu ritual de preparação do café, e o pó no coador continuava calado, por mais que eu o olhasse, esperançoso.
Não conseguindo mais suportar minha frustração, a garrafa térmica decidiu inclinar-se para mim e sussurrar-me os segredos ocultos na borra. No entanto, como nunca havia falado antes, seu sussurro acabou se tornando um grito. As imagens ocultas, compactadas no fundo de meu coador 102, foram projetadas no piso da cozinha e em cada porta de armário. O que parecia ser só um punhado de pó de café espalhou-se por toda a cozinha — a cada quique do coador uma nova imagem na parede. A garrafa havia conseguido revelar-me tudo. Nada ficou por ser mostrado, pois até mesmo o rejunte do piso ficou repleto da cafeínica profecia.
Ao ver o festival de imagens pixeladas em tons de preto exclamei: Que beleza! — certamente a saudar aquele espetáculo que se tornou a cozinha. Afinal, por que limitar-se a procurar imagens num espaço tão reduzido, como o fundo de uma xícara, se você pode vê-las ganhar vida em três dimensões? Uma sagaz solução para os que têm seus dons premonitórios prejudicados pela miopia.
Passada a sessão de palavras doces que declamei, achei melhor limpar a revelação. Contudo, minha inexperiência com a “cafeomancia expandida” teve um preço: a ânsia da garrafa por comunicar-se acabou queimando-me o braço. Ferido, abandonei a cena para ungir o braço com pomada para queimadura antes de começar a limpeza.
Como o amigo pode observar, as imagens que mencionei não me revelaram o futuro. O passado recente, quem sabe? Talvez seja essa a tônica da “cafeomancia expandida”, mas deixo essa conclusão aos estudiosos do tema. De qualquer forma, caso o leitor queira iniciar-se nessa nobre arte, recomendo, para seu próprio bem, que comece com pouco café. Vai por mim. Por fim, prepare seu espírito… usando muito ou pouco café, o apagar das revelações será um porre.